Adham Marin e Júlia Martins

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Entrada da Aldeia. Foto: Júlia Martins

Quem teve seu primeiro contato com a cultura indígena por meio das obras românticas de José de Alencar ou pelo modernismo livre de Mário de Andrade teria um sobressalto ao chegar às “Terras de Araribá”, área que abriga 4 aldeias indígenas na região limítrofe de Avaí e Duartina, cerca de 40 quilômetros de Bauru. Longe de se identificarem com Iracema ou Macunaíma, é consenso entre os 4 povos indígenas que coabitam a área avaiense destinada à preservação da cultura indígena: o índio que aprendemos nas descrições escolares nunca existiu.

Empunhados de smartphones, nosso primeiro contato com o povo terena, predominantemente habitantes das aldeias Ekeruá e Kopenoty, foi por meio de um aplicativo de mensagens instantâneas que funciona em celulares com acesso à internet. Pelo bate-papo, marcamos a visita à aldeia pelo número de telefone que conseguimos em um blog que a aldeia mantém na internet. Sem cocares e canoas, os índios das quatro aldeias desfrutam dos benefícios que a tecnologia traz, ressaltam sua importância, mas são taxativos em dizer que isso não afeta a identificação cultural dos povos. Um dos índios nos alertou que apesar dos celulares e dos cortes de cabelo “à la Neymar”, eles não deixaram de ser índios. “Meu sangue é índio. Ser índio está aqui”, reitera batendo no peito.

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Dona Elza, aos 60 anos, não domina o português. Foto: Júlia Martins

Originários da região centro-oeste do país, os Terena dividem com mais duas etnias indígenas a área à beira do Rio Jucutinga há, pelo menos, 100 anos. Migrantes para a região antes mesmo da formação do município de Avaí, a dúvida sobre quem acolheu quem não impede a boa convivência entre os vizinhos. Hoje, os índios têm representatividade no poder público por meio de um vereador e da preocupação do Secretário Municipal da Cultura em preservar e difundir a cultura dos povos Terena, Guarani e Caingangue.

Chicão Terena, como gosta de ser chamado o morador da aldeia Kopenoty, conta que seu povo atuou como soldados na Guerra do Paraguai do lado do Brasil, esperando do governo o cumprimento da promessa de demarcação das terras à beira do Rio Paraguai, próximo ao Pantanal matogrossense. “A demarcação não aconteceu e, em 1912, 5 famílias Terena vieram habitar essa terra, antes povoada pelos Guarani, por conta da construção da Ferrovia, que ligava a nossa região, que hoje compreende ao Mato Grosso do Sul, ao interior paulista.”.

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Vivendo em meio à natureza, indígenas dizem preferir a calma ao agito da cidade grande. Foto: Júlia Martins

O morador das terras Kopenoty também conta que a conservação da tradição indígena acontece pela a manutenção da figura do Cacique, que tem como função representar os interesses indígenas junto ao poder público, mas também ocupa o topo da hierarquia na cultura indígena. “Até quando vai acontecer um casamento, o cacique chama as famílias e celebra o casamento da forma tradicional”, relata, ressaltando que após a morte do Cacique acontece uma eleição para escolher o novo, diferente da época em que a função era passada de geração em geração. O indígena ainda pontua que o Cacique é responsável por presidir as reuniões ordinárias que acontecem para definição de decisões sobre assuntos relativos à aldeia. “Todas as decisões acontecem em reunião com a nossa comunidade”, afirma.

60 residências praticamente iguais compõem a aldeia Kopenoty, na qual também mora Elza Lipo Pereira, neta de Hipólito Lipo, um dos fundadores da aldeia. De saia longa, Elza conta que, durante a noite, dispensa as roupas “de homem branco” e se rende à liberdade das vestes que aprendeu usar com seu avô, só um tapa sexo. Muitas vezes, seu híbrido de português e dialeto terena torna-se ininteligível a ouvidos mal treinados. A índia conta que, sem possibilidade de ir à escola quando criança, só aprendeu o português há pouco tempo. Durante a entrevista, seu pouco contato com a civilização urbana ficava latente. “Essa eu não vou saber responder”, falou muitas vezes. Ao ser questionada sobre sua idade, pediu um tempo, foi pra dentro da casa de alvenaria e tijolos à vista e voltou. “Vou fazer 60”, respondeu depois de perguntar à filha.

A fala mansa de Elza se confundia muitas vezes com a trilha sonora que nos acompanhou durante toda a visita à aldeia – era um funk ostentação, tocado em amplificadores por um garoto que brincava com seus gatos.

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Alice Charim, orgulhosa: “Índio tá no sangue”. Foto: Júlia Martins

Alice Charim também tem 60 anos e mora ao lado de Elza, porém veio de uma aldeia próximo a Ibraúna-SP quando tinha por volta de 6 anos. A caingangue conta que muita coisa mudou e fala saudosa sobre as grandes festas que aconteciam em 19 de abril, em função da comemoração do Dia do Índio. Sobre sua profissão, Alice contou que vive da agricultura, principalmente com a produção de batatas e mandiocas. Orgulhosa, contou que moradores da cidade vão até Kopenoty em busca dos produtos produzidos na aldeia. Segundo a agricultora, nos últimos anos, as casas de pau a pique deram lugar à alvenaria, mas a aldeia ainda conserva traços da identidade indígena, evidenciados principalmente pela plantação de mandioca e batata doce, que propiciam a subsistência de grande parte das famílias moradoras da aldeia. “Não está mais como antigamente, mas a gente ainda é índio. Tem muitos índios idosos aqui que nem falam português”, pontua.

“Eu preferia ficar aqui, é mais calmo, na cidade tem muita doença. Mas semana que vem vou embora para Campo Grande trabalhar”. Essa é a realidade de Ane Carolina Antônio, de 19 anos, nascida e criada nas terras Kopenoty. De celular na mão, a índia conta que é totalmente integrada à tecnologia. “Tenho celular, Whatsapp, Facebook, mas sou índia, porque ser índio é origem”, finaliza, dizendo que sentirá saudade da família e da aldeia. “Se pudesse escolher, eu ficaria aqui”.

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Aparecida Antônio mostra roupas tradicionais indígenas. Foto: Júlia Martins

Mãe de Ane, a faxineira e zeladora da Escola Estadual da aldeia, Aparecida Antônio, vive na Aldeia Kopenoty desde que nasceu, há 51 anos. Fluente em todos os dialetos usados pelos índios da região, Aparecida é analfabeta e tem medo que o acesso irrestrito aos meios de comunicação faça se perder a identidade cultural do povo indígena. “É muito bom ter televisão, energia, não precisar usar lamparina… Mas eu tenho medo dos jovens se contaminarem. A gente cultiva a tradição como dá, comemos arroz, mas também comemos o b      iju, que na nossa língua se chama Apati. Somos índios”, fala orgulhosa. “Você vê um índio sem cocar, sem colar, você acha que não é índio, mas esses elementos têm significado pra nós e são usados em ocasiões específicas”, contou também a faxineira enquanto mostra as roupas indígenas guardadas na escola na qual trabalha.

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Por volta das 17h, crianças andam cerca de 2km para retornar da escola. Foto: Júlia Martins

Ocupado principalmente com o resgate da cultura na aldeia, Antônio é professor de cultura indígena na escola da aldeia Tereguá. O professor conta que sua principal atividade é nutrir nos alunos o orgulho de pertencerem à cultura indígena, principalmente por meio do ensino do idioma nativo. “O sistema de ensino brasileiro fala de um índio que não condiz com a realidade. Então muitos dos nossos alunos que frequentaram escolas tradicionais tinham vergonha de se apresentarem como índios, por conta desse arquétipo criado em torno da cultura indígena, do bom selvagem”, ressalta, salientando a importância do acesso aos bens tecnológicos fornecidos pela sociedade não-indígena, mas reiterando que o respeito pelo meio ambiente também é uma constante na educação indígena, o que, segundo o professor, não acontece nas sociedades urbanas. “Hoje, nossas casas são de alvenaria, como as de vocês. Imagina se cada pai de família fosse fazer uma casa de pau a pique, quantas árvores precisariam ser derrubadas?”, questiona.

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“Na cidade, todo mundo fica trancado”, Marcelo Antônio, 12 anos. Foto: Júlia Martins

Amantes da liberdade, as crianças também veem benefícios na vida permeada por natureza. Marcelo Antônio, de 12 anos, andava de bicicleta quando já íamos embora. Paramos o carro. “Marcelo, se você pudesse morar aqui ou na cidade, onde escolheria?”. “Aqui, lógico, na cidade fica todo mundo trancado. Aqui a gente pode sair, brincar…”, despede-se, mostrando que eles ainda têm muito a nos ensinar.

 

 

 

 

 

Fotos: Júlia Martins

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