Sem passeios públicos planos e rampas de acesso, os portadores de deficiência enfrentam problemas sérios no centro da cidade

Texto: Tiago de Moraes e Guilherme Dorini

A Questão da acessibilidade vai além de rampas e acessos, ela se relaciona com o próprio direito de ir e vir. (Foto: Guilherme Dorini)

A questão da acessibilidade vai além de rampas e acessos, ela se relaciona com o próprio direito de ir e vir. (Foto: Guilherme Dorini)

 

Calçadas íngremes, em péssimo estado de conservação, algumas delas sem rampas para acesso e espaços públicos sem o mínimo de acessibilidade. Esses são os principais desafios diários que os portadores de alguma deficiência física ou pessoas com sua mobilidade reduzida, como gestantes, idosos e mães com carrinhos de bebê enfrentam para se locomover o centro bauruense.

A questão da acessibilidade, ou melhor, a falta dela, é igualmente sentida em outros pontos da cidade. Ariani Queiroz de Sá, coordenadora do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Comude), entende que o projeto de infraestrutura da prefeitura deixa a desejar. “Nós temos sugestões para o poder público, entretanto, não somos consultados em muitos dos projetos que interessam as pessoas com deficiência”. Mesmo recebendo mais investimentos para a construção de rampas e outras obras de mobilidade urbana, a área central da cidade ainda apresenta falhas graves no que já deveria ser considerada referência para as demais regiões do município.

Em consonância com um decreto federal, a lei municipal n° 5.825, que trata sobre o assunto, só obriga os munícipes que possuem imóveis novos ou em reforma em execução na cidade, cujos lotes sejam localizados em esquinas, a requerer a implantação de rampas de acessibilidade. Como a responsabilidade das calçadas é atribuída aos proprietários dos imóveis, a instalação de rampas nos locais mais antigos depende da boa vontade do mesmo. Sidnei Rodrigues, titular da Secretaria de Obras, estima que, na cidade, ainda existem 1.000 quadras sem pavimentação de rampas.

Tem coisas que o poder público contempla e outras não. É fato que existem mais rampas na região, mas não há acessibilidade em todas as ruas. Em muitos bairros, ela é quase inexistente”- Ariani Queiroz de Sá.

Cadeirante, Ariani reconhece que a situação já foi pior. “Nos últimos anos houve melhoras sensíveis sobre a acessibilidade em Bauru, mas ainda não é o ideal. Tem coisas que o poder público contempla e outras não. Existe uma contradição, por exemplo, no centro da cidade. É fato que existem mais rampas na região, mas não há acessibilidade em todas as ruas. Em muitos bairros, ela é quase inexistente”. Como a legislação municipal não prevê nenhuma mudança para os estabelecimentos já existentes, a Secretaria Municipal de Planejamento (Seplan), responsável pela condução da infraestrutura, só acaba fiscalizando os passeios públicos com guias irregulares.

POLÍTICA

Para o vereador Fábio Manfrinato (PR), o direito constitucional de ir e vir fica refém da morosidade da administração pública e dos proprietários dos imóveis, responsáveis pela conservação das calçadas. “É quase um problema cultural, está relacionado com o pensamento das pessoas. Existe a necessidade de intervenção tanto do Poder Executivo quanto dos proprietários desses imóveis particulares, cada um tem a sua responsabilidade. Muitas vezes, a acessibilidade é enxergada como um monstro, não como um investimento necessário que pode, por exemplo, abrir um leque de oportunidades. A inclusão só traz benefícios”.

 

O vereador Fábio Manfrinato propõe um sistema municipal para o atendimento de pessoas com deficiência auditiva (Foto: Tiago de Moraes)

O vereador Fábio Manfrinato propõe um sistema municipal para o atendimento de pessoas com deficiência auditiva (Foto: Tiago de Moraes)

 

 O parlamentar lembra que a acessibilidade vai muito além da instalação de rampas. Apesar de considerar que a cidade avançou muito neste aspecto, Manfrinato defende que ainda falta um sistema eficiente de atendimento para deficientes visuais e auditivos, bem como melhorias nos trajetos de ônibus e nos passeios públicos.

A coordenadora do Comude pensa de forma semelhante. “Hoje, os ônibus são adaptados, mas se eu não tenho condições de chegar até o ponto, eu também não vou conseguir trabalhar, estudar e frequentar os lugares que eu desejo. A base de tudo é uma maior sensibilidade, e isso não é encontrado em quase nenhuma cidade brasileira”, defende Sá.

RISCOS

Quando o passeio público não oferece o mínimo de segurança, os perigos de acidentes são altos. A coordenadora do Comude conta que já se acidentou no Calçadão da Batista de Carvalho. “Aquelas pedras portuguesas que decoram o piso do calçadão são as piores coisas que existem para um cadeirante, para uma mãe com carrinho de bebê e até mesmo para uma pessoa que usa muletas e bengalas. Quando as pedras se soltam, criam-se buracos que não são devidamente restaurados e viram um perigo para todos que têm a mobilidade reduzida”.

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Falta acessibilidade até nos prédios públicos

 

O descaso com a questão é só mais um reflexo dos problemas de infraestrutura urbana do nosso país, no qual, segundo o IBGE, 23,91% da população possui algum tipo de deficiência. Nem mesmo os prédios públicos possuem estrutura para receber essas pessoas. “A prefeitura dá vários maus exemplos nos prédios públicos. A própria Seplan, órgão que faz a fiscalização das calçadas, não tem acesso para os cadeirantes. No prédio ainda tem uma escadaria irregular e um banheiro fora dos padrões. Para assumir o papel de fiscal é preciso, antes de tudo, dar o exemplo”, completa Manfrinato.

 

olho2

 

Sidnei Rodrigues explica que os prédios públicos estão sendo “adequados de acordo com a disponibilidade de recursos financeiros”. O secretário de obras argumenta que a atual legislação é benéfica. “Entendemos que os avanços dentro do projeto de acessibilidade estão dentro da metodologia de planejamento para uso e ocupação de solo, no qual toda obra ou empreendimento vem sendo executado com toda infraestrutura e de acordo com as normas atuais”.

Ariani Queiroz de Sá acredita que há um longo caminho pela frente. “Só chegaremos num cenário satisfatório se a cidade for contemplada com uma forma de acessibilidade que inclua tanto uma criança de 8 anos como um idoso de 80, independente dela ser deficiente ou não”.

 

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Na pele

Resolvi fazer um trajeto no centro da cidade com a cadeira de rodas. (Spoiler: não deu muito certo).

Texto: Tiago de Moraes

Experiência problemática (Foto: Guilherme Dorini).

Experiência problemática (Foto: Guilherme Dorini).

 

Desde o início da elaboração da pauta sobre a acessibilidade no centro da cidade surgiu a ideia de um trabalho in loco  sobre as rampas e o estado das calçadas na região. A proposta inicial era fazer um trajeto, com a cadeira de rodas, da Rua Primeiro de Agosto até a Rua Júlio Prestes, algo que, normalmente, leva uns 10 minutos. Para evitar mais problemas, já que eu não sou cadeirante, tentei me adaptar com a mobilidade reduzida alguns dias antes. Eu já pensava que o trajeto não seria fácil de completar, mas no fim das contas, a experiência foi muito pior do que eu tinha imaginado.

Era uma manhã de terça-feira, 8 de junho. Logo no começo, tive facilidade para virar a cadeira de rodas para o outro lado e a segurar corretamente a trava da roda. O passeio, no entanto, já começou tumultuado. Descer a Rua Antônio Alves se mostrou uma tarefa árdua. A calçada, toda esburacada, exigia-me um grande esforço para sair de um buraco para cair no outro. Os desníveis da rua não ajudavam muito. No entanto, vale ressaltar que a minha cadeira de rodas não era muito própria para uso, era velha e a trava não funcionava direito. Mas, do que eu conheço da realidade no país, é possível que muitos outros cadeirantes não tenham condições de possuir um instrumento novinho, com pneus adequados, que garanta o mínimo de autonomia.

A rampa de acesso existente na quadra 6 da rua Ezequiel Ramos contrasta com o péssimo estado do passeio público, quase inutilizável. Foi necessário a ajuda de um gentil desconhecido para não cair da cadeira de rodas e parar na rua (Foto: Guilherme Dorini).

A rampa de acesso existente na quadra 6 da rua Ezequiel Ramos contrasta com o péssimo estado do passeio público, quase inutilizável. Foi necessário a ajuda de um gentil desconhecido para não cair da cadeira de rodas e parar na rua (Foto: Guilherme Dorini).

 

Cheguei à esquina com a Rua Ezequiel Ramos. A rampa, construída recentemente e bem sinalizada, parecia fácil de atravessar. E foi. Meu maior medo no momento era dar tempo de chegar ao outro lado com o sinal fechado para os carros. Foi fácil concluir que o semáforo acaba privilegiando os veículos. Se normalmente eu achava que o tempo não era suficiente, agora, depois de sentir na pele o que um cadeirante passa diariamente, eu tenho certeza.

Percorrendo o caminho pela Rua Gustavo Maciel encontrei as mesmas dificuldades. Escapando de um buraco para ficar preso em outro, batendo com a cadeira de rodas no muro, tirando restos de comida e fezes presas nas rodas e enfrentando cada desnível com toda força muscular que eu tinha nos braços. O cansaço logo chegou para me abater e eu ainda nem tinha chegado na metade.

O caminho era estreito e eu precisei de ajuda para não cair na rua”

Decidi, então, fazer o caminho de volta. Todos os problemas já enfrentados foram potencializados por esse fator. Antes, porém, fiquei preso em um longo monte de entulho, repleto de galhos e folhas, na Rua Presidente Kennedy (que não tinha rampa de acesso naquela quadra). O caminho era estreito e eu precisei de ajuda para não cair na rua. Subindo a Antônio Alves, tive que fazer parte dos trajetos próximo dos carros porque os desníveis entre as partes do passeio público eram quase intransponíveis.

 

Além de não possuir rampas, a calçada no cruzamento das ruas Presidente Kennedy e Antônio Alves estava repleta de entulho (Foto: Guilherme Dorini).

Além de não possuir rampas, a calçada no cruzamento das ruas Presidente Kennedy e Antônio Alves estava repleta de entulho (Foto: Guilherme Dorini).

A segurança de que, logo após o final da experiência, tudo ia voltar ao normal deu lugar à tensão. De volta a aquela mesma rampa da Ezequiel Ramos, havia um desvio que impedia da roda chegar à parte mais alta da calçada. A trava estava falhando e eu estava a um passo de descer para o meio da rua, com o trânsito em movimento. Um desconhecido acabou me ajudando e eu fiquei seguro novamente. Próximo da esquina em que o trajeto começou, um outro desconhecido, de aparência e jeito simples, me empurrou até a esquina como forma de solidariedade.

Calçadas esburacadas, como esta localizada na quadra da Antonio Alves com a rua Presidente Kennedy, são frequentes por toda a cidade (Foto: Guilherme Dorini).

Calçadas esburacadas, como esta localizada na quadra da Antonio Alves com a rua Presidente Kennedy, são frequentes por toda a cidade (Foto: Guilherme Dorini).

 

No dia em que eu fui parte dos 23% da população brasileira que possui algum tipo de deficiência, entendi de uma nova forma o que é a inclusão. Na pele de um cadeirante senti os olhares de pena, de compaixão e de tensão. Como ser humano, compreendi que um mundo melhor é aquele em que todas as pessoas tem a garantia de ir e vir com autonomia. Até agora, estamos longe desse cenário.

O resultado da experiência (Foto: Matheus Paiva).

O resultado da experiência (Foto: Matheus Paiva).

Reportagem originalmente desenvolvida para as disciplinas “Redação de Jornalismo Impresso” e “Introdução à Fotografia” do curso de Jornalismo. Universidade do Sagrado Coração. Bauru, 2015.

Colaboração: Matheus Paiva e Thayná Fogaça // Edição: Erica Franzon e Giselle Hilário // Arte: Tiago de Moraes.